O que a BNCC fez com a Educação Física

Parecer sobre Versão 3 da BNCC para Educação Física
Parecerista: Alexandre Jackson Chan Vianna – FEF/UnB
0. Objetivos a serem atingidos pelo texto:
a. Reflexão geral sobre os documentos da BCNN aplicados para a especificidade da Educação Física
b. Revisão crítica sobre o texto referente ao componente Educação Física no Ensino Fundamental
Espera-se apresentar no conjunto as dissonâncias que a proposta impõe a especificidade da Educação Física
Obs. Apesar de não tratar em profundidade dos demais componentes escolares, o texto se utilizará livremente de analogia com as disciplinas da escola tradicional para melhor apontar as reflexões da especificidade da Educação Física no contexto da proposta da BNCC
1. A Educação Física na BCNN
A BCNN propõe organizar um conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens sociais, para garantir aos indivíduos em todo o território nacional o domínio de conteúdos e o desenvolvimento de competências específicos em cada etapa da Educação Básica. Espera-se que seja referência nacional para a construção de currículos pelos entes confederados, alinhando o trabalho das instituições educacionais. Pensando na complexidade nacional, a BNCC se pretende uma forma de estruturação do conjunto de aprendizagens essenciais, garantindo equidade para as diferenças e autonomia para a construção de currículos de acordo com cada especificidade escolar. Substitui a tradição da escola pautada em conteúdos desinteressantes pois descontextualizados para a aprendizagem de competências aplicáveis de imediato ao cotidiano dos indivíduos.
A Educação Física na BCNN é definida como componente curricular da Área de Linguagens, conjuntamente com outros componentes. O documento justifica a composição da área devido a presença dos componentes nas práticas sociais, portanto construções humanas, e por ser através dessas práticas que aconteceria o acesso ao
conhecimento proposto na escola. Aponta ainda que a perspectiva de área deve transcender a dos componentes curriculares sem perder as especificidades de cada um deles. O objetivo geral da área é ampliar a capacidade expressiva e compreender as manifestações das diferentes linguagens, reconhecendo que estas são produtos culturais que estruturam as relações humanas. Na especificidade, no entanto, o documento anuncia que a Língua Portuguesa e a Língua Estrangeira devem ser apresentadas como um conjunto de recursos que permitem práticas sociais mais efetivas e globais. Já as Artes são formas de conhecimentos que articulam saberes sensíveis do corpo, da intuição, razão e emoção. As Artes se constituiriam como universo de experiências e contribuiriam para a interação crítica do estudante. A Educação Física, por sua vez, é apresentada como um conjunto de práticas sociais expressas por meio da gestualidade passiveis de leitura e produção, o que a aproximaria dos pressupostos comuns à Área de Linguagens. Assim, a Área de Linguagens se apresenta com um foco central que é o domínio da língua nativa escrita e falada, o Português. Já os outros domínios são apresentados como apoio a este recurso fundamental, exceto a Educação Física que aparece como acomodado na área.
Nas bases gerais para o Ensino Fundamental e para a especificidade da área de Linguagens, a BNCC aponta para o desenvolvimento do estudante em suas dimensões físicos, cognitivos, afetivos, sociais, entre outras. Afirma que o trabalho escolar deva se pautar em torno do interesse manifesto da criança e das suas vivencias mais imediatas. Que nessa progressiva sistematização das experiências o estudante vá adquirindo capacidade de ler e formular hipóteses sobre o mundo. Que nos anos iniciais a criança está vivendo importantes mudanças no seu processo de desenvolvimento e o resultado disso é a maior interação com o mundo. Neste momento a ação pedagógica deve ter foco na alfabetização. Nos Anos Finais o documento enfatiza o crescimento dos aspectos socioculturais ainda decorrentes das grandes transformações do desenvolvimento humano dessa fase e que a ação pedagógica deva ser na ampliação do repertório dos jovens. Em síntese, o documento aponta a importância do desenvolvimento do indivíduo para conquistar seu mundo social e a importância da alfabetização, em sentido ampliado, a partir das necessidades cotidianas.
Os documentos gerais apontam para o lugar da Educação Física como apêndice da Área das Linguagens. A argumentação sintética descreve mais justificativas para enquadra-la na área do que indica sua potencialidade de contribuição. Além disso,
apresenta especificidade que poderia ser a das Artes. Em face a proposta da BCNN para o Ensino Fundamental, o presente parecer reflexivo apontará lacunas e possibilidades para a disciplina na atual proposta. Antes porem é necessário contextualizar a disciplina Educação Física.
A Educação Física, como área de conhecimento e intervenção social amplia gradativamente seu escopo de prática na sociedade. Atualmente, o termo é utilizado para se referir a: (1) uma área de conhecimentos aplicada, que a CAPES posiciona na Grande Área da Saúde, e, (2) um campo de intervenção profissional, que comporta 5 grandes dimensões: esporte, lazer, estética, saúde e educação, sendo a Educação Física Escolar o componente de destaque dessa quinta área, mas não exclusivo. Apesar de sua origem moderna de prática social ser no campo da pedagogia, na escola, a hegemonia acadêmica da área ainda se concentra nas ciências biológicas – anatomia, fisiologia, psicologia, desenvolvimento motor, etc – pela força hierárquica da tradição científica, perpetuada pela decisão política de figura-la como parte da Grande Área da Saúde nos órgãos de fomento do conhecimento. Assim, apesar de um vasto e diferenciado campo de atuação, o profissional de Educação Física é reconhecido e se reconhece pela competência em tratar da funcionalidade da máquina humana em movimento, o corpo. A despeito da força majoritária, em todas as dimensões da Educação Física o estudo e a intervenção com referência nas Ciências Humanas e Sociais se fazem presente e ganham relevância relativa, em especial, enquadrando o movimento humano como uma cultura própria.
No contexto da Educação Física Escolar, o processo de construção social do conhecimento desde a redemocratização do país gerou grandes conflitos e pouco consenso sobre o papel da disciplina na escola. Considerando que a proposta do BNCC recai para uma compreensão culturalista, que enquadre a disciplina na Área das Linguagens, alguns pontos fulcrais de reflexão são necessários: (1) ponderando que a BNCC propõe orientar para um consenso nacional, em que medida devam ser consideradas tradições e inovações da prática pegagógica? (2) a proposta deve considerar a estrutura curricular atual, em especial propor objetivos compatíveis ao tempo destinado a disciplina na grade curricular?
Será apresentado na seção seguinte a análise crítica pontual ao texto sobre o componente Educação Física no Ensino Fundamental (4.3.3 no original), que seguirá refletindo sobre os temas abordados neste parecer a partir dos conceitos gerais da
proposta da BNCC. Será analisado e comentado o texto por tema/parágrafos seguindo a ordem de leitura. Ao final serão tecidas considerações à guisa de síntese e de reflexões ampliadas.
2. O componente Educação Física no Ensino Fundamental
1o ao 5º § – Apresenta descrição conceitual da Educação Física. Destaca o propósito “autoral” como espaço criado no currículo escolar, de uma educação que se pretende integral, para as questões relacionadas à formação do corpo. Aponta o papel da Educação Física de enriquecer as experiências das crianças em relação aos saberes corporais presentes nas culturas. Aborda como o conteúdo deve ser flexível e considerar os significados culturais, não se restringindo as dimensões técnicas e biológicas. Que os resultados da aplicação desses conteúdos geram tipos de conhecimentos muito particular e insubstituível. Delimita os saberes corporais ligados à Educação Física que pressupõem o componente lúdico, pois as características apontadas descrevem as atividades que assumem o formato de um jogo. Aponta para saberes além da racionalidade predominante na escola. Reforça que o locus dessas práticas está fora de propósitos específicos e instrumentais, delimitando-o no lazer e cuidado da saúde. Cita algumas aprendizagens pretendidas: vivenciar (experimentar na prática), aprender a jogar melhor (para se divertir e cuidar da saúde).
Comentário:
Três pontos fundamentais se apresentam de forma evasiva e devem ser enfrentados pelo texto proposto no eixo central de sua formulação. O conteúdo/tema especifico do componente Educação física, o posicionamento sobre o predomínio da competência de saber fazer ou saber pensar/ refletir e a referência futura que o ensino da escola aspira são temas que se mostram movediços quando a Educação Física tenta se aproximar da tradição do fazer pedagógico das outras disciplinas da escola.
A definição proposta para a Educação Física escolar destaca o seu papel na sensibilização do estudante para as diversas possibilidades gestuais do corpo. Tal conceito coloca a priori qualquer movimento e intencionalidade do corpo humano como tema das aulas de Educação Física. Desde o início deveria se dar foco ao fenômeno do jogo, o lúdico, que vai ganhar força no decorrer do texto. Esse marcador poderia ser interessante para se aproximar de um consenso possível para a Educação Física
Curricular. A despeito de interessantes propostas pedagógicas tematizando movimentos do cotidiano serem criadas por diversos professores, estas estariam mais propícias as ações interdisciplinares enquanto a atividade lúdica se apresenta na tradição como conhecimento especifico, mesmo que não exclusiva da disciplina. Esta decisão também colocaria de forma contundente e afirmativa uma identidade comum para as práticas corporais na escola, considerando aqui as Artes, cada qual com suas tradições construídas ao longo da história da humanidade. Há que se pensar que a distinção fina aqui se daria nas Artes se aprofundando nos jogos dramáticos e de representação enquanto a Educação Física nos jogos de valorização das habilidades corporais agonistas e de auto superação – conceito que provoca turbulência saudável na proposta culturalista apresentada, mas potencializaria a superação das divergências na área de conhecimento da Educação Física.
O destaque conferido ao aspecto “autoral” e “ampliação dos recursos para si e para os outros” não evidencia se a proposta pedagógica tem como foco central o conteúdo com fim em si mesmo ou como meio para outros objetivos. Logo, fica a dúvida se a pretensão é formar jogadores, dançarinos, lutadores, reproduzindo a excelência esportiva, ou permitir que as crianças possam experimentar, adaptar e recriar as manifestações corporais de acordo com seus interesses ou potencialidades. Esse pode ser considerado um desafio de todas as áreas, pois, a filosofia pode não querer simplesmente transformar o estudante em alguém que conhece muito sobre filosofia, mas em um filósofo, o mesmo se dá com o ensino da Língua Portuguesa, que se esmera em formar pessoas cultas em relação à literatura brasileira, mas que também podem ser escritores.
A discussão, no entanto, é que as outras áreas iniciam a formação para a “autoria” a partir do envolvimento da criança com o conhecimento já produzido. Ou seja, a criança para se transformar em um filósofo inicia pela aquisição de uma proficiência na filosofia, da mesma maneira, a criança para se transformar em um escritor, inicia pela aquisição da proficiência na leitura. Porém, para a Educação Física, essa relação se tornou estigmatizada, ou seja, não se discute se é possível recriar o esporte sem antes permitir à criança se transformar em um atleta. Essa temática não está exposta com clareza na proposta, nem como posição e nem mesmo como desafio a ser perseguido.
As diversas possibilidades de temas para a Educação Física foram sendo legitimadas ao longo da história. Logo que a disciplina foi criada, a ginástica, que estava
presente na Paidéia Grega como um dos pontos importantes para a formação do homem grego, que era essencial na preparação militar para a guerra, e, que se modernizava com as descobertas científicas sobre o funcionamento biológico do organismo humano, foi escolhida pela maioria das escolas para compor o currículo. Logo em seguida, o esporte moderno, que também era parte da Paidéia Grega, que passa a ocupar lugar de destaque na mídia e cria novas possibilidades de entretenimento para o homem urbano, revelando as proezas de que o corpo humano, com a ajuda da ciência, é capaz de executar. Nesse momento, o esporte se incorpora como a melhor opção.
Como a transição da ginástica para o esporte não significou que a ginástica tenha sido considerada inadequada. Cada escola tem a possibilidade de avaliar qual é a prática corporal que possui maior afinidade com a sua proposta pedagógica como um todo e optar pela Educação Física focada em uma (ou mais de uma) prática corporal em particular. Isso permite a escolha pela dança, pelas lutas e, até mesmo, pelas brincadeiras e jogos populares, dentre outros. O texto aponta para a grande diversidade de práticas corporais disponíveis no acervo cultural, mas não indica como esse acervo vem crescendo e se diversificando exponencialmente nos dias atuais. Podemos citar apenas os jogos virtuais com exemplo de inovações que já dominam a cultura e desafiam o cenário da Educação Física.
A questão a ser enfrentada na construção de uma BNCC aqui é se o currículo de Educação Física deve escolher um rol fechado de práticas corporais. É necessário impor a todas as escolas a opção pela mesma prática corporal? O texto, implicitamente, responde negativamente a essas perguntas, e apresenta como opção a reunião de todas as possibilidades ao mesmo tempo. Estamos diante, portanto, de um currículo para a Educação Física escolar que é uma verdadeira enciclopédia de práticas corporais. Tal opção se torna inatingível no tempo da escolarização e fere as proposições do texto pelo menos duas vezes, quando advoga que cada prática tem uma aprendizagem especifica e insubstituível e quando propõe o respeito as particularidades de cada cultura. Por outro lado, pensar em eleger práticas corporais fundadoras ou elementares seria rejeitado pelos partidários de outras práticas, que passariam a se considerar negligenciados. Aqui se trata claramente de uma luta política e histórica da Educação física, qual seja, combater um currículo informal que apresenta apenas um conteúdo ou conjunto semelhante de conteúdos (geralmente esportivos). A opção mediada desse dilema seria sugerir a multiplicidade, mas, permitir que a escola opte por um rol de modalidades
restrito a serem trabalhadas ao longo do Ensino Fundamental. Dessa maneira, no entanto, pode se perder a finalidade de uma base nacional curricular comum nos moldes como se apresenta com referência nas disciplinas de cunho conteudistas/racionalistas tradicionais.
A perspectiva do texto aponta para as contribuições da Educação Física para a formação geral das crianças, mas, não esclarece, qual é a contribuição específica da Educação Física. Que competências a criança somente tem a oportunidade de aprender na Educação Física? Dentre as inteligências múltiplas, a inteligência corporal-cinestésica, relacionada com a destreza das habilidades corporais, com certeza é um componente específico da Educação Física (mesmo que não exclusivo ou passível de interdisciplinarizar-se). Outro aspecto sempre associado às práticas corporais como um todo é a saúde (ainda mais interdisciplinar, mas com lócus significativo na Educação Física quando se trata de qualidade de vida e vida ativa). Temos, portanto, dois aspectos que não se esgotam na questão cultural, que possuem uma dimensão técnico-científica de caráter predominantemente vivencial/prático e que, talvez por isso, não é apresentado pelo texto estritamente de cunho culturalista. Pergunta-se: existe a necessidade de se abandonar o conhecimento da corrente gerativista da linguística para se compreender e aplicar os conhecimentos estruturalistas no ensino das Linguagens faladas e escritas? O ensino da música na escola deve negligenciar a competência do estudante em conhecer/realizar os timbres, os ritmos, a frequência, tons, melodias em nome de priorizar reconhecer/refletir sobre as diferentes expressões culturais da música?
O texto deve enfrentar, portanto, que a Educação Física não pode querer se aproximar das outras disciplinas com tradição de conteúdos fechados definindo um rol de práticas corporais. Mais uma vez, tornar o jogo como tema central, delimitando-o nas práticas construídas na tradição da Educação Física, mas permitindo inovações e assumindo que as aprendizagens são particulares e múltiplas pode nos levar a uma Base que encontre uma identidade mesmo que com um conteúdo aberto, já que não possuímos (pelo menos numa abordagem culturalista) uma gramática elementar e com os conhecimentos necessários cronologicamente sistematizados para o aluno explorar com autonomia todas as possibilidades de práticas típicas da Educação Física.
O alcance da proficiência infantil nas habilidades corporais deve incluir os aspectos relacionados com as técnicas construídas na história. Existe um patrimônio cultural do universo dos jogos e princípios biológicos que regem o funcionamento dos
movimentos corporais para se alcançar a excelência no jogo. O lúdico é o aspecto transversal às diversas práticas corporais. Apesar de algumas diferenças, todas as práticas corporais da tradição da Educação Física podem ser descritas como parte de um jogo agonista e de busca de excelência da ação motora, quando o homem, de forma espontânea e consciente, envolve-se no exercício de suas habilidades corporais para tentar superar desafios, que o colocam em oposição ficcional a si mesmo, ao outro ou a natureza. Essa constatação pode ser chave para a proposta de uma BNCC que engaje eruditos e práticos do fazer pedagógico da Educação Física na Escola Básica.
Por fim, o texto opta por anunciar (1) o locus das práticas corporais da escola fora de propósitos específicos e instrumentais, delimitando-o no lazer e cuidado da saúde. (2) Valoriza ainda algumas aprendizagens pretendidas – vivenciar (experimentar na prática) e aprender a jogar melhor (para se divertir e cuidar da saúde). Com isso, o texto (1) exclui o universo profissionalizante do esporte em que a Educação Física pode, de forma crítico-reflexiva (pois tradicionalmente o faz de forma precária), ser uma primeira etapa do portfolio das múltiplas carreiras típicas que nascem do praticar/conhecer essas modalidades. O contexto que pode ter gerado essa exclusão é o estigma construído contra o ensino do esporte na escola, pautado no modelo de alto rendimento e considerado descomprometido com uma reflexão crítica fundamental do ambiente escolar. Ainda, ungido pelo mantra de que o esporte profissional é para excelentes e, portanto, antidemocrático e não inclusivo criou-se na área escolar uma dicotomia entre esporte de rendimento e esporte escolar. Se pensarmos que a profissionalização é temática geral da Escola Básica, mesmo no Ensino Fundamental, então abrir mão da potencialidade da Educação Física nesse campo parece inconcebível. Apresentar e refletir sobre o tema com as crianças e adolescentes e provocar neles o interesse em perseguir esse meio de vida parece legitima função da escola. A produção de conhecimento na área já permite termos segurança no aprendizado inicial para o alto rendimento que considere as premissas pedagógicas e de respeito a fase de desenvolvimento infante. Pensando apenas na carreira com fim no esporte altamente especializado como profissão, é equivocado negar a prática pelo percentual de sucesso de estudantes, que apesar de pequeno não é menor do que o alcance de outras carreiras em que a escola se orgulharia em promover – o médico, o engenheiro, o advogado. Ademais, como em qualquer dessas carreiras que a escola apresente e promova, estimular o sonho de todos para alguns alcançarem não elimina os benefícios que cada
um pode adquirir no processo. Exatamente assim ocorre na carreira esportiva onde durante toda a formação se agregam benefícios aos engajados. (2) prioriza a aprendizagem conceitual e elementar quando pretende predominar vivencias práticas com objetivo apenas de experimentação. É consenso na Pedagogia do Esporte que ao se ensinar esporte deva se ensinar bem a todos e ensinar mais que o esporte, mas antes de tudo ensinar a gostar de esporte. Eliminar essa possibilidade é desidratar a área desconsiderando um ambiente importante de significação das práticas corporais.
Posta as reflexões anteriores, pensar nas proposições seguintes se tornam redundantes. Ainda assim, a despeito da proposta procurar coerência, serão feitas observações pontuais que colaborem com a proposta original.
6o § ao 19o § – Reafirma a inserção da Educação Física na Área de Linguagens e apresentar o princípio geral utilizado para categorizar as 6 unidades temáticas das manifestações culturais do corpo.
Comentários
A descrição das unidades temáticas é restritiva, simplista e não segue um padrão.
Brincadeiras e Jogos são descritos em termos gerais, sem qualquer menção a uma possibilidade de classificação e ao valor intrínseco às aprendizagens relacionadas a cada um dos seus diferentes tipos. Ao fim, impõe a identidade dos Jogos Populares ao conjunto de práticas contidas na temática, caracterizando uma visão romantizada sobre as atividades infantis típica de uma convicção de parte da comunidade acadêmica da Educação Física.
O Esporte também é descrito em termos gerais. Entretanto, apresenta referências superficiais à sua diferenciação em esporte de lazer ou de competição. Utiliza uma flexibilidade conceitual que não esclarece porque o jogo derivado do basquete, citado como exemplo no final do parágrafo, pode ser considerado um esporte. O exemplo aponta para a utilização dos jogadores para uma representação do basquetebol formal. Considerando que todo jogo tem seu caráter de representação da realidade vivida/observada pelo jogador, o exemplo do jogo de duplas do basquete poderia ser classificado na unidade temática Jogos e Brincadeiras, assim como toda brincadeira de bola com os pés poderiam estar classificados na categoria Jogos ou Esportes. A conceituação do esporte parece querer mantê-lo aprisionado no modelo formal e, com isso, justificando os conceitos mais amplos do texto culturalista que tem dificuldade de
lidar com o predomino escolar do esporte formal e o desempenho, além do reducionismo dito conteúdo “racionalizado”. Se essa hipótese se confirma, estamos diante de um preconceito retrógrado, que tem força de argumento na área acadêmica e sensibilidade no chão da escola, mas que deve ser questionado.
A Ginástica é dividida em três tipos, que não esgotam as possibilidades da modalidade. Por exemplo, quando a demonstração assume um caráter competitivo, ela se distingue das demais e passa a ser vista como esporte; quando é praticada por pais e filhos (matroginástica) assume o caráter de lazer e interação social. Esses dois exemplos demonstram porque o texto não se propõe a classificar as unidades temáticas anteriores, pois, a classificação sempre vai ser alvo de críticas. Mas, consciente disso, porque optar pela classificação da ginástica, que fica com 4 parágrafos, em detrimento das lutas que tem somente um pequeno parágrafo? Porque a temática se exclui de atividades competitivas que é elemento fulcral das atividades lúdicas? A hipótese recai na preferência por essas práticas e dos pressupostos acadêmicos existenciais da autoria do texto. Isso posto, é momento propício para levantar outra questão a ser enfrentada que é a “autoria” (termo do texto para o aluno que pratica) do professor que vai traduzir as Bases no seu contexto particular: não podemos desconsiderar, (principalmente) numa proposta culturalista relativista, que a trajetória simbólica singular do professor define – e deve mesmo definir – quais conteúdos serão aplicáveis e como, em cada planejamento escolar.
A Dança foi descrita de forma geral, com uma menção vaga às suas codificações particulares e sem um destaque para a sua interdisciplinaridade com a música e a arte. A dança pode ser considerada um conteúdo da Educação Física, mas, também, existem licenciaturas voltadas para a dança, assim como os professores de educação artística, na habilitação para o ensino das artes cênicas, realizam diversas práticas pedagógicas relacionadas com a dança. Caso aja necessidade de alguma discriminação de temáticas a serem abordadas por cada um desses componentes da Área das Linguagens, a tradição aponta a habilidade motora como especificidade da Educação Física. Caso a prioridade seja a proximidade para corroborar com o conceito de áreas, a dança deveria ser tratada em conjunto e não temática especifica de um ou outro componente. Outro exemplo do mesmo ponto relativo a temática Ginástica são as Artes Circenses, que ganham corpo atualmente nas propostas da Educação Física e são tradicionalmente mais próximas das artes.
A Luta foi descrita de forma geral, com uma menção a diversidade de técnicas e estratégias utilizadas. Mesmo em uma proposta culturalista, não há destaque a importância de sua inserção na história e na cultura, pois, em linhas gerais, essa unidade retoma o contato da Educação Física com suas tradições de preparação para a guerra e o caráter militar que marca o seu conteúdo. Um fato contemporâneo para exemplificar é o cinema, este quando o corpo ganha destaque apresenta 3 aspectos chaves: esporte, sexo e guerra (ou policial, ou aventura). Ainda existe aqui interface forte com a filosofia quando se trata das artes marciais em sua cultura milenar oriental. Essse e outros fatos justifica melhor tratamento e mais profundidade a temática, quando se quer culturalizar os temas da Educação Física.
A tendência do texto em culturalizar jogos e ginásticas e “tecnificar” esportes e lutas pode decorrer, ou ao menos reafirmar, o preconceito maniqueísta arraigado da área de que existem práticas humanas, pedagógicas e contrárias a lógica perversa da sociedade enquanto outras são resultado/reforço dessa lógica a ser combatida. No seio desse preconceito está a dificuldade da área de conhecimento Educação Física tratar da dicotomia social/biológico e do conceito competição/desafio.
As Práticas Corporais de Aventura incorporam temática inovadora para a Base. Abre o repertório para práticas do cotidiano que ganham adeptos no fazer pedagógico da Educação Física Escolar e que dialoga fortemente com a juventude. Vale ressaltar que a organização dessas práticas corporais se apresenta com novos paradigmas, entre eles, de fundamental importância para a temática, ter no seu ethos a dispensa de uma prática regular e sistematizada típica dos esportes convencionais e de um professor/orientador em instituição formal para o aprendizado. Em se tratando de realiza-las na escola, no entanto, inúmeros desafios operacionais seriam ainda colocados para o professor.
Em conclusão, observa-se que cada unidade temática comporta muitas opções de classificação diferentes, como afirma o texto. Nas brincadeiras e jogos existem piques, estafetas, jogos cantados, jogos com personagens, jogos de faz de conta, jogos de memória, jogos de imitação, etc. No caso do esporte a diversidade é maior ainda com mais de 60 modalidades olímpicas, por exemplo, que a todo ciclo olímpico o país sede ainda sugere a inclusão de modalidades demonstrativas. Os dois exemplos evidenciam que as 6 unidades temáticas comportam uma grande diversidade de atividades diferentes,
cada uma delas com características singulares, de forma que, fazer menção a grandes unidades temáticas não contempla o objetivo de definir uma BNCC.
Tomemos agora o ciclismo como exemplo. Trata-se da prática corporal muito em voga atualmente que vai desde o brinquedo da criança, passando pelo esporte, aventura e o propósito gímnico do bem estar, até meio de transporte com caráter de manifestação da política-vida nas metrópoles. Em qual temática seria tratada? Em que momento? Outro exemplo. Os jogos eletrônicos devem ser excluídos? Ainda que não fosse necessário, os jogos virtuais atuais atendem por completo a definição dada de prática corporal do texto. E o pôquer, que ao se apresentar como esporte na mídia se tornou uma prática de lazer para as famílias com tremenda organização no campo do lazer? Numa outra perspectiva, em que momento as grandes e premiadas iniciativas de trabalhos pedagógicos de criação de jogos estariam atendidas? E outras construções sociais do conhecimento da/para escola como os jogos educativos ou jogos cooperativos?
Em especial é importante destacar. Dentre as unidades temáticas sugeridas, em nenhum momento aparece a Psicomotricidade, prática corporal pedagógica por origem e excelência, que tem uma proposta singular construída para responder às necessidades das crianças com dificuldades nas aprendizagens escolares. Os tradicionais circuitos de desenvolvimento motor da área seriam incorporados na ginástica, nos jogos, atividades de vertigem ou seriam abolidos? A proposta culturalista do texto desarticula qualquer chance de sistematização da alfabetização motora nos moldes em que a tradição se apoia e não apresenta nada consistente para essa finalidade.
A síntese aponta o caráter lúdico (auto-orientado, espontâneo, não-instrumental, prazeroso, realizado no hiato da vida literal) comum a todas as unidades temáticas. Se o elemento lúdico, acertadamente, é apontado como transversal às unidades temáticas, porque deixar para dizer isso de forma explícita somente na síntese que conclui a apresentação das unidades temáticas? Ainda assim, apesar dessa assertividade da centralidade do jogo, estranha a sentença que “…o caráter lúdico está presente […] ainda que não possa ser convertido em finalidade da Educação Física.” Ora, se o redigir ou o ler o texto não vacilaram, a afirmação nega o lúdico como produto pedagógico. Se é isso, a questão é – porque o lúdico deva deixar de ser uma finalidade do componente curricular Educação Física na escola? Porque a proposta valoriza tanto o lúdico e este não pode ser genuinamente um produto escolar se, por exemplo, construir um texto
escrito o é? Não se tratam das linguagens particulares de uma mesma Área? Em que medida isso representa o ranço da Educação Física de se preocupar com objetivos cognitivos, racionais, intelectualmente racionalizados para fugir do complexo de inferioridade que a persegue? Porque não admitir a especificidade do nosso campo e valorizá-lo? Se ao final da aula as crianças conseguirem brincar bem, atendendo os desafios pedagógicos dados pelo professor, elas terão realizado tanto quanto a criança que termina uma boa redação na aula de Português.
20o § – Apresenta as 7 dimensões do conhecimento (para atender ao quesito panorama da abordagem metodológica; aprendizagens pretendidas)
1. Experimentar – vivenciar para conhecer (por meio da prática)
2. Usar e apropriar – saber fazer, ou seja, praticar para aprender a jogar bem
3. Fruir – aprender a apreciar
4. Refletir sobre – aprender a conviver (sobreposição)
5. Construir valores – aprender a ser e aprender a conviver na diversidade (novamente)
6. Analisar e compreender – aprender sobre (dimensão teórica e conceitual)
7. Protagonizar na comunidade – aprender a agir cidadão e responsável
Comentários
A descrição de unidades temáticas gerais para a BNCC guarda uma correspondência maior com as dimensões: (1) Experimentar para conhecer – a grande quantidade de atividades possíveis de serem realizadas é compatível com a proposta de um contato superficial para conhecer as práticas corporais; (4) Refletir sobre – pois, essa dimensão está voltada para os aspectos organizacionais da atividade, que com certeza vão estar presentes nas vivências; (6) Aprender sobre – pois, os professores podem solicitar a realização de atividades teóricas de estudo sobre as práticas corporais vivenciadas.
As dimensões: (2) Usar e apropriar, assim como a (3) Fruir, dependem de um envolvimento das crianças com a modalidade que excede a proposta de vivência. Para se apropriar de uma prática corporal a criança deve ter a oportunidade de se dedicar a processo sistemático de aprendizagem que desenvolva o domínio dos movimentos corporais/ações motoras. Mesmo para aprender a apreciar uma prática corporal, é preciso ter domínio cognitivo e sensorial sobre ela que permita ao expectador entender o
que está acontecendo – por exemplo, muitos brasileiros não conseguem apreciar um jogo de baseball – assim, para ambos os domínios a prática é fundamental. Esse fato é tão elementar como saber ler e escrever para se poder apreciar uma boa prosa ou poesia em um livro.
(5) Construir valores e (7) Protagonizar ações na comunidade são diretrizes gerais de formação humana e de ação social que podem ser aplicadas a todos os conteúdos escolares.
A dimensão do conhecimento (4) Refletir sobre deve ser reescrita de forma a abranger uma reflexão crítica sobre os usos e desusos do corpo na sociedade atual; questões relacionadas com a distorção do esporte pela superveniência de interesses políticos e econômicos devem necessariamente ser abordados para que seja possível a construção de um ideal de esporte que instrumentalize as crianças a lutarem pela sua transformação social.
21o § até o 24o § – Apontamentos iniciais discorrem sobre a inexistência de critérios consensuais para a organização dos objetos de conhecimento, para hierarquia, ordem, separação ou progressão entre elas ao longo das etapas do Ensino Fundamental. Para apoiar os sistemas de ensino e as escolas e para aumentar a flexibilidade na delimitação dos currículos sugere como critérios de progressão:
1. Do familiar ao não-familiar
2. Do mais frequente para o menos frequente
3. Das mais corriqueira para a menos comuns
4. Do mais localizado para o mais universal
e apresenta os desafios a serem superados:
1. Legitimação ético-política (que aponta para a proposta pedagógica da EdF escolar)
2. Curricular (que se confunde com a proposta do BNCC)
3. Interdisciplinar (que aponta para escola como um todo)
4. Didático (que aponta para a formação e compartilhamento de saberes)
Comentários
Os critérios utilizados para definir a progressão dos objetos de conhecimento possuem um caráter formal que não se coaduna com a flexibilidade sugerida ao longo
de todo o documento, como também, não são utilizados de forma explícita para legitimar a progressão. Assim, a questão aqui é quando e como cada critério foi empregado e qual é a influência que exerce sobre a progressão proposta.
Vamos nos colocar na posição de um professor, do 1o, 2o e 3o anos do EF, no momento da elaboração do seu plano de curso, a ser desenvolvido ao longo de um ano letivo. Ao olhar o quadro com a progressão dos objetos de conhecimento verifica que deve, ao longo do ano, contemplar quatro unidades temáticas: Brincadeiras, Esportes, Ginástica e Dança. Em sua escola, no entanto, a organização curricular é trimestral, logo, deve escolher um trimestre em que vai abordar duas unidades temáticas. Isso é um complicador da proposta.
Sobre os critérios de progressão é fácil abstrair e realizar que um professor pode optar pelo avesso da proposta apresentada. Pegando as abordagens pós-estruturalistas como exemplo, um professor que proponha uma pesquisa para que os alunos analisem seu cotidiano e escolham os temas a serem trabalhos no período pode se deparar com algo não-familiar, não frequente e menos comum para começar. Meninos e meninas de 7 e 8 anos do interior do sertão brasileiro podem se deparare se encantar, com certa facilidade, com a prática esportiva de polo com elefantes do Nepal. O local e o universal, o perto e o longe, o normal e o bizarro se tornaram coirmãos na contemporaneidade e é impreciso saber o que será familiar, instigador ou necessário para os alunos em cada momento.
A escolha pelas unidades a serem juntadas pode variar de um professore para outro, ou de uma escola para outra, mas, vamos considerar isso como aceitável. Ainda assim, o tempo disponível para cada unidade temática é suficiente para que as sete dimensões do conhecimento sejam realizadas? E no caso de um professor do 6o e 7o anos, quando todas as unidades temáticas devem ser trabalhadas?
Da mesma forma que a Psicomotricidade foi preterida, os critérios relacionados aos princípios e às características do desenvolvimento humano (físico, motor, perceptivo, cognitivo, social, afetivo), em particular na 3a infância e adolescência, não foram utilizados para definir a progressão dos objetos de conhecimento.
Por exemplo, nos primeiros anos do Ensino Fundamental a criança, de uma maneira geral, possui uma maturidade motora insuficiente para se envolver em esportes de precisão ou ginástica de demonstração. A sequência das danças e lutas pressupõe que
a criança consegue dançar desde os 6 anos, logo, modifica os tipos de dança e de luta, como se a criança tivesse apenas que entrar em contato com esse objeto do conhecimento, mas, ela deve, segundo a proposta, vivenciá-lo na prática. Aprender a dançar está relacionado com desenvolver coordenação motora, ter força e equilíbrio, adquirir noção espaço-temporal e ter consciência das variações rítmicas. Sendo assim, por onde se deve começar, pelas danças locais ou pelas habilidades básicas?
Os interesses e as necessidades das crianças não foram considerados nos critérios de progressão dos objetos de conhecimento.
A linearidade exposta no quadro de distribuição de objetos de conhecimento ignora o princípio de continuidade. A questão do condicionamento físico, que afeta diretamente na saúde e qualidade de vida das crianças, não pode estar circunscrita ao 6o e 7o anos, por exemplo. O 8º e 9º anos não podem estar impedidos de vivenciarem os jogos populares típicos das crianças de 13 e 14 anos. Um modelo de aprendizado em espiral proposta na ideia de que o conhecimento se reconstrói a cada vez que se é exercitado poderia ser uma alternativa a ser trabalha, mesmo sabendo as dificuldades que isso traria para o formato que um documento como a BNCC exige. Entretanto, assim acontece nas demais disciplinas quando um conteúdo é apresentado de forma elementar nos anos iniciais e retorna de forma mais complexa nos anos subsequentes. As práticas corporais não apresentam qualquer meio de serem hierarquizadas de modo a uma ser pre-requisito de conhecimento das outras, mesmo que em todas se encontre possibilidades de transferências de conhecimento.
3. Considerações finais
3.1 BNCC e a Educação Física
O texto proposto é importante, pois revela incompletudes e contradições da Educação Física enquanto disciplina na escola. O documento aponta para o desafio da sistematização da Educação Física no Ensino Fundamental. Como a disciplina nunca teve um currículo com proposta de progressão de conhecimento numa abordagem culturalista – e não existe consenso acadêmico em relação a essa questão – a missão de elaborar a BNCC desse componente específico da Área das Linguagens tem que se cercar de uma série de cuidados para não ser repelida ou ignorada pela comunidade e,
mais sério, não desarticular as bases que tornam a disciplina viva na escola, mesmo que de forma precária em algum sentido.
De dois ajustes possíveis, o texto escolheu encaixar a Educação Física nos conceitos da BNCC. Essa decisão iguala a Educação Física às disciplinas de cunho cognitivo/racionalista/conteudista, que apresentam objeto de estudo claro e sistematização cronológica em suas tradições. Valeria a ousadia da outra possibilidade, desencaixando tais conceitos para acomodar as particularidades que a Educação Física traz para a escola (e isso pode ser pensado, novamente, com as outras disciplinas – artes, danças, músicas, teatro). Este novo texto em contraposição ao atual poderia tentar afirmar nossas diferenças das outras disciplinas, sem preconceitos ou sentimentos de inferioridade, apresentando uma proposta que marque identidade e contribua para a construção do conhecimento sem romper com as idiossincrasias mais caras que une a comunidade da Educação Física no chão da escola.
Por outro lado, a proposta atual – eminentemente culturalista – se esforça para dialogar com a Área das Linguagens. Entretanto, apostando na inovação abandona tradições e a integralidade interna dos saberes da Educação Física. Ao elaborar as argumentações numa abordagem cultural do movimento humano e o conceito de práticas corporais, o texto (1) amplia e diversifica o conhecimento tornando-o subjetivo e abstrato a ponto de não poder ser sistematizado e; (2) elimina ou esvanece as abordagens pedagógicas que prezam pela aprendizagem do movimento e pelo ensino das modalidades esportivas tradicionais. Assim, não atende nem a uma sistematização convencional das Bases, nem as tradições fundantes da Educação Física.
3.2 O jogo como objeto especifico
Qual é a gramática da Educação Física? Quais operações fundamentais iniciam, alicerçam e desencadeiam equações complexas para praticar ou para compreender uma prática corporal? Ao abandonar as ações motoras, ou culturalizá-las, a disciplina perde seu chão e não apresenta ainda maturidade (se é o caso que alcançará) para apresentar um “conjunto de conhecimentos” fundamentais para serem sistematizados ou sequenciados como se baseiam as outras disciplinas da escola com um background de conhecimento cientifico mais amadurecido. É necessário que a Literatura defina seus textos/escritores fundamentais (o que é diferente de escolas de épocas que mostram o processo civilizatório nesse campo)? É preciso as Ciências Humanas definirem quais fenômenos devam ser obrigatoriamente estudados em cada fase. Ao definir blocos de
práticas corporais obrigatórias e hierarquiza-las, a proposta elimina a possibilidade de trabalhar de forma integrada com as demais disciplinas, de permitir aos professores assumirem propostas pedagógicas co-participativas ou abertas a participação do aluno ou da comunidade de acordo com seus interesses ou potencialidades, que as outras disciplinas mais fechadas têm dificuldade em se apropriar e que a Educação tem um sua genes cultural e filosófica. Assim, apesar do avanço notório em ampliar a análise do movimento humano, para além do ato funcional, compreendendo-o como manifestação cultural, a proposta deixa no vazio qualquer chance de sistematização cronológica e especifica que seja reconhecida, aplicável e pedagogicamente avançada.
O que limitou a potencialidade do texto foi a opção de dar as práticas corporais o conceito norteador. Utilizando esse recurso, escolheu um elemento de difícil organização para sistematização linear da aprendizagem. O jogo, de forma tímida, é apresentado como temática transversal, mas ainda assim não ocupa centralidade na proposta.
A sugestão maior deste parecer é propor o jogo como tema central da Educação Física. Se considerado como o objeto específico do ensino da disciplina, teríamos um corpo de conhecimento e um rol de elementos do domínio do corpo, do controle de objetos e de organização/cognição para efetuar a ação de jogar que progressivamente seria apropriado pelo aluno, sem que a prática corporal empregada para isso fosse uma escolha restritiva. Ao se apropriar de forma sistemática com o universo do jogar, em paralelo o aluno deveria, aí sim, conhecer/refletir/criticar as diversas manifestações ou restrições sócio-culturais do jogar nas diferentes esferas da vida.
O aprendizado desse objeto, o jogo, encontra suas bases de conhecimento bastante fundamentadas. Antes de tudo, saber jogo é saber jogar, mantendo a prática no centro das ações pedagógicas. Depois, o conhecimento acumulado da área permite sistematizar um currículo desde a aprendizagem (psico)motora, passando pelas ações cognitivas de tomadas de decisão, até conceitos filosóficos que podem ser sistematizados numa sequência de aprendizagem em espiral (que o texto proposto não considera). Caberia ainda o refinamento do conceito com as outras disciplinas que tematizam o jogo como as Artes, de modo a delimitar as características do jogo que se enfatizará. Nesse aspecto, os jogos agonistas e de desempenho parecem ser os mais típicos da Educação Física em contraposição as outras disciplinas.
A proposta culturalista não pode ser substituta das tradições da Educação Física, mas complementar, notadamente de apoio para tornar a tradição mais significativa, reflexiva e diacrônica, assim tornando-a mais efetiva. É nesse aspecto que o texto comete seu maior equívoco. Considerando o próprio ponto de vista da análise cultural, eliminar as tradições de uma comunidade é desorganizá-la com efeito direto em seu desaparecimento ou apropriação por uma cultura com maiores cotas de poder (leia-se claramente a cultura das disciplinas “importantes” da escola).
3.3 Educação Integral, Esporte e Saúde
É preciso analisar/definir se a BNCC se pautará pela atual ou por uma nova organização escolar. Não é possível ter a expectativa de que a Educação Física escolar, realizada em um horário duas vezes na semana (ou em um único horário duplo na semana como costuma acontecer em diversas escolas), seja capaz de corresponder às necessidades das crianças em relação à estimulação do seu desenvolvimento psicomotor, à promoção da saúde/qualidade de vida, e, à iniciação esportiva.
A disciplina Educação Física não dá conta das necessidades infantis em relação à saúde e ao esporte. Para a primeira, as crianças deveriam ter acesso diário (ou no mínimo 3 vezes na semana), a atividades moderadas por pelo menos 30 minutos de duração. Na segunda, as crianças – que têm direito de acesso ao esporte na escola – necessitariam para a aprendizagem esportiva de dedicação sistemática a uma mesma modalidade, todos os dias (ou pelo menos 2 vezes na semana), em sessões de 1h30, com exercícios que interessam apenas aos que desejam aprender a praticar uma dada modalidade, não satisfazendo todos os alunos a não ser que exista uma oferta diversificada e ampla na escola.
A prática para a saúde e para a iniciação esportiva devem ser consideradas como novos componentes curriculares na Educação Integral. Se queremos levar a sério a educação corporal das crianças é urgente multiplicar os espaços dedicados a essas práticas na escola. Assim como existem horários distintos para gramática, literatura e produção de textos na Língua Portuguesa, é preciso criar no currículo escolar horários distintos para (1) a atividade física para a saúde, (2) a iniciação esportiva, e (3) a educação física escolar.
Em conclusão, certo de que o atual texto é resultado de esforços hercúleos para solucionar as imensas incompletudes e desafios da Educação Física e posicioná-la no
debate da melhoria da escola, ainda é necessário muito avanço e consenso para que a BNCC seja realmente o que se pretende e não mais um documento desmobilizador das iniciativas positivas existentes em diversas escolas no Brasil.